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A (QUASE EXCLUSIVA) ABORDAGEM BIOLÓGICA DAS DOENÇAS MENTAIS: ATÉ QUANDO?
Vanessa Fabiane Machado Gomes Marsden
Mestre em Psiquiatria e Saúde Mental, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Especialização em Psiquiatria pela Universidade Federal de Uberlândia
Mestre em Psiquiatria e Saúde Mental, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Especialização em Psiquiatria pela Universidade Federal de Uberlândia
Eu adoro praticar a
Medicina Psiquiátrica. Acredito que tudo nesta área da medicina é arte: das
práticas do diagnóstico clínico, no qual o médico bem treinado é o melhor
instrumento diagnóstico às relações interdisciplinares para o entendimento
bio-psico-social do doente (muito mais do que da doença). A Psiquiatria é o
ramo da Medicina com a maior preocupação humanista e que realmente vê o
paciente numa perspectiva global.
Em 2005 deixei o
Brasil para um Mestrado em Portugal. A possibilidade de testemunhar um olhar
diferente sobre as mesmas categorias diagnósticas foi sedutora na decisão de
deixar para trás família e segurança. A aposta valeu a pena e pagou dividendos.
A experiência trans-cultural enriquece e amadurece, etapas essenciais no
desenvolvimento saudável de qualquer pessoa. Ao final do Mestrado, mais uma vez
fiz as malas e rumei Norte, desta vez para a Inglaterra. Outra possibilidade
sedutora, de novos conhecimentos e tecnologias....mas foi aqui que me decepcionei
um pouco ao descobrir um lado da psiquiatria que, embora reconheça como extremamente
importante, preocupa-me por estar a dominar o pensamento básico atual.
Citando o artigo de
Richard Bentall (2009) no jornal britânico Guardian, Edward Shorter, um
historiador da psiquiatria disse: "Se há uma única realidade
intelectual central ao final do século 20 é que a abordagem biológica da
psiquiatria - que trata a doença mental como uma doença da química cerebral
influenciada geneticamente - é um verdadeiro sucesso".
Desde que aqui cheguei tive
a oportunidade de conhecer a psiquiatria que está sendo desenvolvida nos
centros ingleses, chegando até mesmo a conhecer o autor mais citado na área
pelo Pubmed. A psiquiatria aqui não tem lugar para a individualidade ou para a
história de vida. É a ciência das massas, da estatística, da matemática e
exatidão convertendo a personalidade em intervalos de confiança.
Entretanto, críticos ao
movimento têm extravazado seu descontentamento com os novos rumos da especialidade.
Richard Bentall relembra que "longe de ser um sucesso, há importante
evidência de que a abordagem biológica tem sido um fracasso lamentável.
Enquanto que no último século observou-se melhorias dramáticas nas taxas de
sobrevivência de pacientes que sofrem de doenças cardíacas e câncer, até agora
os resultados esperados para os pacientes que sofrem das formas mais severas de
transtornos psiquiátricos - as psicoses (desordens nas quais os pacientes
experimentam alucinações ou delírios, geralmente resultando em um diagnóstico
de esquizofrenia ou doença bipolar) - mudaram muito pouco desde o período
Vitoriano”.
Longe de ser tão radical
quanto o autor acima, acredito que a psiquiatria biológica teve sua importância
nos últimos 50 anos ao revolucionar o cuidado com os pacientes. Para melhor
exemplificar, cito o discurso do antigo presidente da Associação Brasileira de
Psiquiatria no Congresso de Psiquiatria do Porto, há uns dois anos atrás. Ele
ilustrou com um exemplo interessante o avanço da psiquiatria nas últimas
décadas, ao dizer que da primeira vez que foi convidado a participar do
congresso no Porto, ele era jovem e estava excitado por viajar de avião. Quando
jovens queremos aventura e nem que tivesse de enfrentar as nove horas de vôo de
pé ele iria. Naquele congresso que presenciei, entretanto, ele estava perto de
se aposentar e referiu que agora, o que mais queria era conforto. Hoje em dia
os aviões (na primeira classe) oferecem até pijama, poltronas que ficam
praticamente horizontais para um perfeito relaxamento e máscaras para dormir,
confortos plenamente condizentes com seus desejos. Mesmo assim o vôo dura
9 horas. E embora o campo da aviação tenha tido grandes e importantíssimos
avanços, os aviões atuais (assim como nos últimos 50 anos) continuam a voar a
780km por hora e não há qualquer modelo disponível que reduza o tempo de vôo. A
aviação moderna apenas oferece mais conforto e segurança.
Assim é o avanço biológico em psiquiatria. Os antipsicóticos de hoje agem baseados nas mesmas hipóteses de há 50 anos
atrás. Não há previsão de cura para as psicoses graves no horizonte. Embora
eles ofereçam maior conforto e segurança com menos efeitos colaterais, o
tratamento continua longo e muitas vezes sem sinais de possibilidade de
interrupção do uso continuado.
No campo do diagnóstico,
continuamos com critérios que não especificam uma doença particularmente.
Pacientes com uma mistura de sintomas bipolares e esquizofrênicos são quase que
mais comuns do que pacientes que se encaixam em uma ou outra categoria
diagnóstica (SALVATORE et al., 2009). O conceito de esquizofrenia continua tão
amplo que dois pacientes podem partilhar o mesmo diagnóstico sem ter qualquer
sintoma em comum. Os critérios diagnósticos (que são estabelecidos
artificialmente, através de consensos) continuam a ser fatores preditivos ruins
no que tange a resultados esperados (PFEIFFER
et al., 1996).
Evidência de
que experiências de vida influenciando doenças mentais continua a aparecer
nas pesquisas. Imigrantes (que têm sido um problema político-social na
Europa e têm sido muito investigados) apresentam pelo menos quatro vezes mais
risco de psicose do que outros grupos e este parece ser mais pronunciado se
eles vivem em áreas nas quais são minorias (MCGRATH et al., 2008).
A separação precoce dos pais também parece aumenter o risco de psicose, assim
como crescer em ambiente urbano e o assédio moral crônico (KELLEHER et al., 2008; MCGRATH et al., 2008).
Enquanto isso, a pesquisa
nos componentes biológicos da doença mental grave continua a ser priorizado em
detrimento de pesquisas de cunho social e psicológico. No Reino Unido,
investigações biológicas nas psicoses são cinco vezes mais comuns do que as
demais abordagens. Não quero propor que toda a pesquisa genética seja
abandonada, afinal desde os estudos finlandeses em gêmeos nos anos 80 sabemos
que há um componente hereditário na esquizofrenia. Entretanto os resultados
obtidos até agora mostram que o reducionismo em voga nas investigações
conduzidas nos países anglo-saxões, nos quais tenta-se explicar a doença
psiquiátrica tão simplesmente como autossômica, recessiva ou metabólica deixa
muito a desejar (PORTIN &
ALANEN (1997).
Não quero com este artigo
sugerir uma rebelião contra os medicamentos. Nunca a qualidade de vida dos
pacientes foi tão boa e a destruição das instituições asilares, nos quais
seres humanos eram enviados para livrar a sociedade de sua presença, só foi
possível devido à qualidade das novas terapêuticas. O objetivo final deste
texto é melhor entendido no contexto de alertar jovens psiquiatras a questionar
as tendências atuais e pensar por si próprio. No Brasil, a pesquisa é muitas
vezes financiada por órgãos governamentais, o que nos dá liberdade de escolher
a área de investigação de forma muito mais livre do que nos países de primeiro
mundo, nos quais o cientista tem que lutar por bolsas que já são divulgadas de
forma enviesada. Um breve olhar no site do MRC ou Medical Research Council,
principal órgão financiador de pesquisas médicas na Inglaterra ilustra o
argumento. As bolsas são distribuídas já com etiquetas sobre para quê e onde
serem utilizadas. Como país emergente, não temos condições de concorrer com a
infraestrutura de pesquisa em abordagem biológica dos países norte-europeus
mas, devido às mudanças sociais e a peculiaridades de nossa cultura, temos um
rico pool que permite a investigação social e psicológica dos
transtornos psiquiátricos.
Referências
BENTRALL R. (2009) – Diagnoses are
psychiatry’s star signs. Let’s listen more and drug people less. Guardian.co.uk,
Monday 31st of August 2009.
KELLEHER I., HARLEY M., LYNCH F., ARSENEAULT L.,
FITZPATRICK C., CANNON M., (2008) – Associations between childhood trauma,
bullying and psychotic symptoms among a school-based adolescent sample. Br J
Psychiatry, 193(5):378-82.
MCGRATH J., SAHA S., CHANT D., WELHAM J.
(2008) – Schizophrenia: a concise overview of incidence, prevalence and
mortality. Epidemiol Rev, 30:67-76.
PFEIFFER S.I., O’MALLEY D.S., SHOTT S.
(1996) – Factors associated with the outcome of adults treated in psychiatric
hospitals: a synthesis of findings. Psychiatr Serv, 47(3):263-9.
PORTIN P., ALANEN Y.O. (1997) – A
critical review of genetic studies of schizophrenia. I. Epidemiological and
brain studies. Acta Psychiatr Scand, 95(1):1-5.
SALVATORE P., BALDESSARINI R.J., TOHEN
M., KHALSA H.M., SANCHEZ-TOLEDO J.P., ZARATE C.A.Jr, et al. (2009) – McLean-Harvard
International First-Episode Project: two-year stability of DSM-IV diagnoses in
500 first-episode psychotic disorder patients. J Clin Psychiatry, 70(4):458-66.
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